Tudo foi carnaval na segunda noite de desfiles do Grupo Especial, em que não foram registrados incidentes graves e o desfile cumpriu o horário, chegando ao fim ainda com a noite escura ao som do melodioso e tristonho samba da Beija-Flor: da vida do multiartista Miguel Falabella aos 200 anos do Museu Nacional, passando pelas divindades femininas africanas, pelos graves problemas do Brasil atual e pela culinária brasileira. E ainda teve uma história de judeus que saíram de Pernambuco para fundar Nova York, ou Novíorqui, como diz o samba. Em uma noite tão variada, destacaram-se duas velhas companheiras, cada uma a seu modo: o suntuoso Salgueiro e a educativa e carnavalesca Portela.

A noite começou com uma escola de peso, a Unidos da Tijuca, que foi parar no desconfortável posto de atração de abertura por causa do acidente em seu desfile de 2017, que a deixou em penúltimo lugar – depois que uma manobra da Liga Independente das Escolas de Samba proibiu o rebaixamento, que vitimaria o Paraíso do Tuiuti. E ela soube bem desfilar naquela posição (a de primeira a se apresentar e a de quem deve limpar sua barra): com “Um coração urbano: Miguel, o arcanjo das artes, saúda o povo e pede passagem”, a Tijuca cantou, sambou e brincou, além de contar com humor e criatividade o impressionante currículo do ator que encarnou Caco Antibes, da infância na Ilha do Governador ao sucesso como multi-homem das artes. Elevada ao status de “escola grande” após a chegada de Paulo Barros, em 2004, a azul-e-amarelo pode ter encerrado esse capítulo em sua história, e parece ter absorvido o upgrade, misturando criatividade estética – um pouco falha nos carros alegóricos – ao chão que sempre a caracterizou.

O grito da águia da Portela se ouviu em seguida, e lá veio a gigante de Osvaldo Cruz defender o campeonato de 2017. Pilotada por Rosa Magalhães, a alvianil contou a intrincada história de um grupo de judeus que, expulsos de Pernambuco por portugueses, entrou nos navios e foi fundar Nova Amsterdã, hoje conhecida como Nova York. Rosa não fugiu ao desafio e contou o enredo de forma completa e visualmente caprichada, sem exagerar no luxo, e contando com a empolgação e a competência dos componentes. É candidata ao título.

A União da Ilha do Governador veio em seguida, falando de culinária em “Brasil bom de boca”, um tema cantado em verso e batuque pelas escolas de samba há décadas. Sem fugir ao seu DNA, a Ilha passou animada e colorida – graças a um pequeno milagre do puxador-monstro Ito Melodia com a bateria de mestre Ciça -, mas um enredo ingênuo como o seu não cabe mais no sofisticado carnaval carioca.

E o Salgueiro, sobreviveria à saída de Renato Lage para a Grande Rio? Por uma dessas ironias de Momo, a alvirrubra da Tijuca pode perfeitamente sair campeã, enquanto a tricolor de Caxias torce para não ser rebaixada, após o desastre de domingo. Com Alex de Souza pilotando o carnaval, o Salgueiro foi puro Salgueiro em “Senhoras do ventre do mundo”, enredo de inspiração africana como tantos que a escola fez nas últimas décadas. Impressionante nas cores – especialmente vermelho e suas variações e dourado -, a escola viajou à África e aos hábitos e rituais das mulheres acolhedoras e guerreiras do Continente Negro. Pequenos incidentes com alegorias podem custar o título, mas, se ele vier, não será injusto.

Sobrou para a Imperatriz Leopoldinense a difícil tarefa de se apresentar em seguida, e a escola de Ramos apareceu para negar o estereótipo: veio leve, brincando, e “pobrinha” em relação ao luxuoso coirmão. Com um enredo clássico, o bicentenário do Museu Nacional, a verde, branco e ouro passou bem, com a história contada com correção pelo carnavalesco Cahê Rodrigues, mas modesta na parte visual. O belo samba, em cadência lenta, também não rendeu o esperado.

Era hora, então, de corrupção, assalto, assassinato e outros problemas que assolam o Brasil. E eles vieram de forma bem pouco carnavalesca, com a Beija-Flor. Irreconhecível apesar dos monstros, ratos, baratas e mortos-vivos de sempre, a escola de Nilópolis desistiu do luxo que a caracteriza há 40 anos para contar, de forma teatral, o enredo “Monstro é aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados da pátria que os pariu”. Com encenações e fantasias que mostravam de forma explícita os problemas sociais que assolam o Brasil – e que apareceram com particular intensidade nos dias de carnaval no Rio -, a Beija-Flor passou seu recado, ao som de um samba belíssimo, mas não o fez de forma carnavalesca. O público entendeu a mensagem e foi atrás da escola, no tradicional arrastão que encerra o desfile, mas o carnaval é ganho em quesitos

Curiosamente, no primeiro ano desde 2009 em que as antigas Quatro Grandes (Portela, Salgueiro, Mangueira e Império Serrano, campeãs quase exclusivas até o meio dos anos 1970) competem no Grupo Especial, três delas podem sair com mais um troféu para a coleção. Cuidado que o futuro vem aí, e ele pode ter cara de passado.