E o título nada tem a ver com o calor dessa cidade, que a alcunha de maravilhosa também tem se perdido aos poucos. Tem a ver mesmo com a energia despejada sobre quase duas mil pessoas no Circo Voador.

O Raimundos trouxe o mais próximo de uma formação clássica que os dias atuais podem ver. Digão nos vocais e na guitarra aqui e acolá, Canisso sempre e inseparavelmente no baixo e Fred, baterista original do grupo, de volta as baquetas. Um palco montado com duas baterias sugeria que o ocupante atual do posto, o competente Caio, entraria no palco em algum momento, o que aconteceu apenas no bis. Porém, antes disso, um dos motivos pelo qual o Circo estava pulsando aquela noite: o grupo de Brasília iria tocar o seu álbum de estreia na íntegra, que estava completando 25 anos de idade.

Músicas como “Selim”, “Nega Jurema” e “Palhas do Coqueiro” além de explodirem o público de êxtase, foram tocadas da forma que toda pessoa que não viu o Raimundos à época áurea espera: repentes feitos com muita maestria por Digão (e acreditem, não são fáceis), baixo de Canisso no talo, guitarras rasgando como motosserras e bateria intensa, enérgica, tocada em estado bruto. E isso, meus amigos e amigas, com o perdão dos seus sucessores, mas apenas Fred consegue trazer para o espírito do Raimundos.

Já no segundo ato da apresentação (tão intenso e completo quanto a primeira) outros clássicos como a pesada “Eu Quero Ver o Oco”, a violenta “Esporrei na manivela” e a ótima e comercial (no tempo que músicas como essas poderiam ser comerciais) “Mulher de Fases”, embalaram o resto da noite dos presentes.

O outro motivo para um Circo Voador lotado é o Ratos de Porão. Que por si só, já é um patrimônio da música brasileira, mas o RDP comemorava o icônico álbum “Brasil”, que completa 30 primaveras no ano vigente e traz uma das críticas sociais mais bem escritas e representadas do espectro musical brasileiro.

Com uma introdução misturando A Hora do Brasil e o tema da Seleção Brasileira que embala as transmissões desde a década de 70, o RDP compactou em menos de uma hora uma série de esbravejamentos, vociferações e impropérios à situação atual, tão similar e caótica quanto ao período que o álbum foi lançado, na época da abertura da democracia brasileira.

A trinca inicial “Amazônia Nunca Mais”, “Retrocesso” e “Aids, Pop, Repressão” seria o suficiente para mostrar o que o RDP tem a dizer com essa apresentação. Felizmente, tivemos muito mais, como a querida “Beber até Morrer” e músicas como “Bad Trip” e “Quando Ci Vuole Ci Vuole”, figurinhas raras no álbum de repetório em shows ao vivo da banda e gratas surpresas. “FMI”, “Crucificados pelo Sistema” e “Obrigado a Obedecer” fecharam a apresentação precisa e de uma das bandas mais relevantes do música pesada do Brasil.

Mais do que um show, RDP e Raimundos entregaram história e legado no Circo Voador. Uma celebração necessária e enérgica que envolve resistência musical e política (até porque, é impossível se comunicar sem se posicionar, quanto mais fazer arte). Que festejemos o passado, e nos atentemos ao futuro.