O longa-metragem “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, o cineasta do premiado “Central do Brasil”, está cada vez mais alcançando recordes de bilheteria no Brasil. Com mais de 1,8 milhão de espectadores atingidos, a obra ocupa a primeira posição nos mais assistidos nos cinemas em novembro de 2024. A história, baseada em livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, retrata a realidade da sua família e em específico de Eunice Paiva, após o sequestro e assassinato de seu marido, o político e engenheiro civil Rubens Beyrodt Paiva, no período da ditadura militar.

Na música brasileira, ocorreram e ocorrem diversos lançamentos que demonstram o descontentamento com questões sociais, políticas e culturais. Nesse caso, clássicos como “Cálice”, de Chico Buarque e Milton Nascimento; “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso e “O bêbado e o equilibrista” de Elis Regina; ocupam até hoje no imaginário dos brasileiros o simbolismo de uma ferramenta de força e resistência.

A trilha sonora da obra “Ainda estou aqui” é composta por músicas interpretadas por artistas brasileiros como Gal Costa, Tim Maia, Caetano Veloso e Erasmo Carlos. Algumas não foram escritas no contexto do golpe militar, mas com a maestria de Salles foram encaixadas metaforicamente ao drama biográfico, instalando assim uma potencialidade de interpretação que torna o filme ainda mais completo. Nesse sentido, é relevante abordar não só algumas canções do filme como também outras que fizeram parte da história da música brasileira, a partir desta ambientação.

Guto Costa

É preciso dar um jeito meu amigo (Erasmo Carlos) – 1972

“Mas estou envergonhado
Com as coisas que eu vi
Mas não vou ficar calado
No conforto acomodado como tantos por aí”

No dia 22 de novembro, dois anos após o falecimento do Tremendão, sua música alcançou o top 3 na playlist “50 que viralizaram – Brasil”. O sucesso de sua canção neste ano, composta em parceria com Roberto Carlos, ocorreu por ser uma das principais da trilha sonora de “Ainda estou aqui”.

Com uma melodia envolvente e a presença constante do baixo e da bateria, ela aborda a urgência em se posicionar e tomar as rédeas da vida quando as situações fogem do controle. A composição menciona as dificuldades e obstáculos do caminho, mas também a postura de se manter crítico, diferente daqueles que preferem se acomodar. Erasmo pontua que as novas gerações devem ser os verdadeiros agentes de mudança em novos ciclos que se iniciam.

Foto: Fernando Young

Fora da Ordem (Caetano Veloso) – 1975

“E o cano da pistola que as crianças mordem
Reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito mais bonita
E muito mais intensa do que no cartão postal”

Com um ritmo progressivo e experimental, a canção do baiano Caetano Veloso, que conta com instrumentos de percussão, além de trechos em outros idiomas, repete com intensidade a frase “algo está fora da ordem”. Tocada no filme, a frase diz respeito à crítica do cantor à realidade brasileira: uma denúncia da desigualdade e da violência. 

 

Walter Carvalho/Divulgação

Apesar de você (Chico Buarque) – 1970

“Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza de desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada nesse meu penar”

Dono de clássicos como “A banda”, “João e Maria” e “Construção”, o carioca Chico Buarque lançou diversas músicas que buscavam abordar o dia a dia da população brasileira nos tempos de ditadura militar: um momento de medo, angústia e ansiedade. Sob o heterônimo de Julinho da Andrade, o artista passou a assinar suas músicas com esse nome para driblar a censura constante das composições musicais da época. 

A obra “Apesar de você” denuncia o regime autoritário das décadas de 1960 e 1970, com os versos de denúncia como “Hoje você é quem manda, falou, tá falado”. Assim, é possível perceber uma linha gradual de sentimentos: desde a abordagem da opressão e silenciamento da população até a expectativa de que os responsáveis por atos de violência sejam punidos, como o verso “Você vai pagar e é dobrado”. 

Correio da Manhã/AN

Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores (Geraldo Vandré) – 1968

“Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão”

A composição que alcançou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção no ano de 1968, tem uma melodia que remete a tempos de esperança e vontade de fazer um mundo diferente. Conhecida também como “Caminhando”, a música rendeu ao cantor uma perseguição militar, que resultou no seu exílio para fugir da situação. A obra faz referência direta às passeatas de protesto, pois o verso “Caminhando e cantando e seguindo a canção” aborda a mobilização do público.

“Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores” tem como refrão os versos “Vem vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer” que denunciam a necessidade de que seja tomado um posicionamento, pois esperar não deve ser a solução. O interessante é que o material também aborda os soldados como homens alienados, que seguem apenas ordens que enfatizam a morte pela pátria e uma vivência vazia, sem propósito.

Arquivo Nacional

Como nossos pais (Elis Regina) – 1976

“Há perigo na esquina
Eles venceram
E o sinal está fechado prá nós
Que somos jovens”

Composta pelo cearense Belchior e interpretada pela imortal Elis Regina, “Como nossos pais” é uma das músicas mais emblemáticas da MPB. Com uma voz potente e intensa, Elis expressa para os ouvintes a amargura da música: os jovens se acomodaram e nada mais fazem quando a situação não está favorável. 

É notável que a música enfatiza a crítica à nova geração: ela se rendeu ao conformismo e adotou a mesma postura que seus pais e antepassados. Assim, os versos “É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem” menciona que é possível sim, as mudanças acontecerem, mas que elas não serão efetivas se os mais novos viverem como seus pais.

Além das músicas citadas, há diversas canções de protesto que merecem ser relembradas: “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil e Os Mutantes, “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso, “Eu quero botar meu bloco na rua” de Sérgio Sampaio, “Comportamento Geral” de Gonzaguinha entre outro na imensa lista de clássicos do Brasil. De acordo com Chico Buarque, “A construção de um novo amanhã, não é um ato isolado, mas de todos nós” (‘Construção’ – 1971) e o filme “Ainda Estou Aqui”, juntamente com a sua trilha sonora, é uma ferramenta essencial para a denúncia social e a busca por um futuro melhor, por meio do seu alcance ao público.