Yuri Riccaldone, especial para o Zimel
O catamarã Rondônia já tinha zarpado do porto de Manaus fazia uns bons 20 minutos, Rio Negro abaixo, rumo ao Festival Folclórico de Parintins, que acontece todo ano no último final de semana de junho. Lá longe despontou a rabeta Princesa Danila, trazendo uma senhora por volta dos 50 anos, de cabelos platinados e blusa bem justinha de onça pintada, e um homem que aparentava bater na porta dos 40, com umas quantas mochilas e uma sacolona da Bemol.
A rabeta pareou nossa embarcação em movimento e, depois de arremessada a bagagem navio adentro, sem se deixar intimidar pelo peso figurativo da idade e pelo peso literal do corpo, a mulher trepou numa das muitas rodas de trator dependuradas na lateral do Rondônia, chegou a bambear, mas com a ajuda de dois passageiros e um membro da tripulação, conseguiu embarcar já muito depois da última hora, seguida pelo companheiro. Dizem que mineiro não perde o trem e aparentemente o amazonense pode até perder o barco, mas o festival não perde por nada.
Para chegar à ilha, é preciso ir de barco ou avião. De barco é possível observar com calma as casinhas coloridas das comunidades ribeirinhas, e ver o sol nascer e se pôr pelo menos uma vez no horizonte do rio-mar, sendo o interior da embarcação bastante pitoresco por si só, com a trama de redes estampadas que se cruzam pelos corredores do navio e toda sorte de expediente arranjada pelos passageiros para passar as quase 24h de viagem. O avião oferece a visão panorâmica da floresta para quem tem a sorte de se sentar na janelinha e tem a vantagem de ser mais rápido, a um preço um pouco mais salgado.
Os números da capital internacional do Boi-bumbá são impressionantes: estima-se que 40 mil pessoas tenham vindo de tudo quanto é canto para assistir o boizinho vermelho e branco do Garantido levar o caneco para a Baixa do São José pela 32º vez, frustrando os planos do tricampeonato do boi da cara preta do Caprichoso. São 15 horas de apresentação ao longo dos três dias do festival, com dezenas de dançarinos, músicos e carros alegóricos que fazem os Transformers parecerem bonequinhos de camelô: virgens Marias e Iemanjás colossais, embarcações e igrejas com dançarinas fantasiadas de borboletas dependuradas nas laterais e, ainda mais impressionante, macacos gigantescos, curupiras com cabelos de fogo e monstros saídos das mais variadas lendas indígenas, cujo terror só poderia ser concebido pelos muitos povos que habitaram e habitam o inferno verde da Amazônia. nenhuma estatística traduz a atmosfera do festival e o amor dos brincantes com a mesma exatidão que a cena da mulher trepando no catamarã ou as galeras do Garantido e do Caprichoso cantando de cor tanto as toadas clássicas, quanto os temas do ano. É de chorar quando a galera vermelha canta em coro meu coração é vermelho, ou quando a marujada levanta a arquibancada azul com o grito o Caprichoso é o boi do povo.
A paixão dos brincantes é tamanha que já de madrugada as filas para as arquibancadas gratuitas começam a se formar, com gente disposta a enfrentar horas e mais horas no calor desse estado onde existe um sol para cada pessoa. Quem tiver com os bolsos forrados pode garantir um lugar nas arquibancadas especiais.
Para quem não tiver nem o dinheiro, nem a disposição para enfrentar o sol amazônico, a dica é esperar a primeira apresentação acabar: a galera quase toda se levanta e vai festejar nas ruas, deixando as cadeiras vagas. Só não pode se exaltar: o comportamento da torcida é um dos itens de avaliação e quem atrapalha o contrário faz seu boi perder pontos com os jurados. Está longe de ser a opção mais divertida, mas é a mais barata e confortável, além de a arquibancada possuir uma visão excelente do espetáculo.
Como nada nesse mundo escapa da contradição, apesar de o festival possuir uma sensibilidade política bastante alinhada com a ordem do dia, os dois bois ainda usam dançarinos brancos para representar as personagens negras do Pai Francisco e Mãe Catirina, os escravos que matam o boi – com uma maquiagem bastante sutil no caso do Caprichoso, que abdicou do recurso no último dia de festival, e um black face típico no caso do Garantido. É importante ressaltar e compreender que o black face no Brasil nem sempre foi usado para ridicularizar a imagem do negro, fazendo parte de outras festas populares que celebram a cultura negra, como a Dança do Cordão Africano, no município amazonense de São Paulo de Olivença, em que mesmo os negros vestem máscaras pretas com bocas vermelhas carnudas em homenagem aos antepassados. Nada impede, porém, que os currais do Garantido e do Caprichoso procurem dançarinos negros para interpretarem os papéis, visto que os índios são representados por índios e caboclos, e os brancos, por brancos. Não deixa de ser parte anacrônica e defeituosa de um folguedo que há mais de cem anos vem abraçando as causas do povo, como bem exaltou o Garantido nos versos da toada Rosas Vermelhas: Escute com muita atenção, outros desejos de Catirina, / são os mesmos de minha mãe, minha irmã e minha filha, / pelo fim da violência, do machismo e da homofobia, / são desejos de Dandaras, Marielles e Marias, interpretados maravilhosamente por Sebastião Júnior e Márcia Siqueira.
A grande verdade é que o Brasil tem muito mais a aprender com o Boi-bumbá do que o Boi-bumbá com o Brasil. Nos tempos sombrios em que vivemos, é um alento verificar que ainda é possível enfeitar-se com plumas e penachos coloridos, cantar junto de desconhecidos na rua, festejar mesmo em face das violências que agridem nosso povo há séculos. Que nessa história de conflitos entre negros, índios e brancos ainda resta a esperança da ressurreição no final, de algo que venha nos redimir a todos. O Boi é festa do povo e por isso mesmo carrega a melhor dádiva do brasileiro: a irreverência, a capacidade de enfrentar e se enfeitar diante desse mundo cão raivoso que vive mordendo nossas canelas sem deixar parar a dança. O Boi é lindo!
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