Texto de Rafael Adorján
Essa foi uma semana de se olhar com atenção para os anos 1980, mas sem aquele típico ranço passadista. Começando pelas artes plásticas com a abertura da exposição FullGás, no CCBB do Rio de Janeiro e encerrando com o show de Edgard Scandurra celebrando os 35 anos de lançamento de “Amigos Invisíveis”, disco de estreia de sua carreira solo, gravado em terras cariocas no lendário estúdio Nas Nuvens, e que ganhou o status de cult com o passar dos anos.
O que ambos eventos tem em comum? Duas iniciativas que se inspiraram no passado, mas realizadas por quem está sempre olhando para frente. Em ambos os casos é natural que possa haver um certo saudosismo, mas em nenhum momento o clima era de revival. No caso de “Amigos”, pelo simples fato de que o show soa como fruto de um excelente disco de rock’n’roll que acabou de ter sido lançado, sem qualquer resquício de uma sonoridade tipicamente datada que caracterizou a década de 80.
Ainda que seja lembrado sempre com a alcunha de “maior guitarrista do Brasil”, Edgard demonstrou sempre que vai muito além. Não por acaso, se autodenominou como “operário do rock”, o que faz muito mais sentido devido à sua participação em bandas seminais da cena pós-punk paulistana como Mercenárias e Smack e colaborações e parcerias com projetos de outros artistas.
Neste cultuado disco, imprimiu uma estética chamada por ele de “tropical mod”, em que sua sensibilidade foi também revelada através de composições inspiradas, com letras que carregam muita rebeldia e um intenso desejo de transformação, mesmo quando o assunto é o amor. Versos como “Não quero ficar aqui não/Eu não nasci pra isso não/E não estou sozinho, ninguém está sozinho/Ponha fé na minha irmão/Eu quero liberdade, mesmo por um segundo/Pra poder anarquizar você” só poderiam vir de uma mente que ainda pode ser a mesma, mas cujo coração é de um inquieto aquariano como Edgard.
Também pode ser considerado de espírito conciliador aquele que tem integrantes da própria família como membros de sua banda, formada por Taciana Barros, sua ex-companheira, no synth e piano, Daniel Scandurra, fruto do relacionamento dos dois, no baixo, e Rodrigo Saldanha, na bateria. O nascimento de seu filho inclusive inspirou a faixa instrumental “Bem vindo Daniel”.
Notável perceber a enorme liberdade de criação que Edgard teve na produção do disco, ao tocar todos os instrumentos e ainda incluir mais quatro faixas instrumentais. Não à toa durante o show, ele fez questão de agradecer o todo-poderoso André Midani, diretor artístico da gravadora Warner na época. E ainda brincou com o público ao dizer “até parece que esse disco fez sucesso”.
A partir daí fomos todos convidados a embarcar nesse trem, em que cada música foi tocada faixa a faixa, para deleite dos nostálgicos presentes. De “Amor em B.D”, onde declara seu louco caso de amor pelas personagens femininas das histórias em quadrinhos (ou bandas desenhadas) européias a “Our Love Was”, versão do The Who autorizada por Pete Townshend, que, ouso dizer, entra para o time daquelas canções em que o cover supera o original. Também merecem destaque “Abraços e brigas” e “Culto de amor”, parcerias bem sentimentais e sinceras com Taciana.
Após fechar o álbum completo, evocou ninguém menos que Jimi Hendrix pra destilar toda sua técnica e fechou o bis com dois clássicos do Ira!, pra ninguém sair reclamando que não tocou nada da sua banda mais ilustre: “Coração” que vem para libertar o punk que ainda existe dentro de você, e uma versão flowerpower de “Flores em você” que remete à psicodelia dos anos 1960, outra forte referência e fonte inesgotável de criação para Edgard.
Mesmo com uma longa estrada já percorrida, Edgard e banda demonstraram que o show atual consegue transferir perfeitamente para o palco toda a energia e o punch que existe de sobra no disco, o que falta em muito jovem por aí nos dias de hoje. Canções que tem o poder de transformar a chama acesa em uma verdadeira labareda escaldante que nos mantém vivos, ativos e com vontade de gritar e pular como nos bons tempos de “dobrar a velha esquina”. A descrição do convite já evocava esse espírito: “Queremos calor, coração e vísceras”. E eles entregaram tudo. Como nunca.
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