E disse Elis Regina: “Se Deus cantasse, seria com a voz de Milton”. A declaração carrega o imaginário relacionado a um dos grandes do panteão da música brasileira. Mas Milton Nascimento também é apenas Bituca, o menino que no primeiro contato com o violão o dominou sem nunca ter tocado um acorde antes, e que em parceria com amigos, deixou um legado musical que ainda inspira e fascina: os álbuns Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978).

As obras batizam e são matéria-prima da turnê que chegou ao Rio, com ingressos esgotados, depois de passar por Juiz de Fora, Belo Horizonte e São Paulo. Bituca mostra pela primeira vez um show conceitual dedicado a essas músicas que fazem parte da memória afetiva de tanta gente, algumas delas apresentadas ao vivo pela primeira vez. “Paisagem da janela”, “Ponta de areia”, “Cravo e canela” ou “Nada será como antes”, para citar apenas algumas, remetem a lugares, sabores, cheiros, amores e amizades, e certamente transportaram o público para os melhores momentos de suas vidas ao longo de uma hora e meia de show.

Acompanhado de Wilson Lopes (guitarras e violões), Alexandre Ito (baixo), Ademir Fox (piano), Widor Santiago (metais), Lincoln Chebib (bateria), Zé Ibarra (vocais) e Ronaldo Silva (percussão), Milton abriu o show dedicado a Lô Borges com “Tudo o que você podia ser”, música que pode ser interpretada como um recado em tempos difíceis (Sei um segredo você tem medo / Só pensa agora em voltar / Não fala mais na bota e do anel de Zapata.

Tudo que você devia ser sem medo). É impossível dissociar a música de Bituca das lutas do cotidiano e do posicionamento perante o mundo – por mais que você encare música apenas como arte pela arte.

Cantor Milton Nascimento no palco com toda sua banda. Ao fundo uma imagem que faz referência ao album Clube da Esquina, um desenho dele com Lô Borges abraçados.

© Lucas Tavares / Zimel

E no tocante ao aspecto artístico, vale mencionar o cuidado estético com a cenografia, assinada pela dupla de artistas Os Gêmeos, em uma bela referência a icônica capa do disco de 1972, que durante muito tempo alimentou o imaginário de fãs que acreditavam ser Bituca e Lô Borges crianças. Além do visual, o público pôde apreciar a releitura na forma de algumas canções, encorpadas com arranjos de metais que dão notas sofisticadas, sem perder de vista a aura genuína que marca os discos. E ainda conhecer um pouco de Zé Ibarra, vocalista da Dônica, e agora parte da banda que acompanha Milton, onde dividiu os vocais em algumas músicas e teve momentos solo, como em “San Vincente”, “Estrelas” e “Trem de doido”. Uma prova da atemporalidade de canções que influenciam uma nova geração de artistas.

O tempo, embora seja implacável com o homem, não impede que Milton ainda mostre vigor através de suas composições e também de seu carisma, ao dividir com o público os causos que inspiraram parcerias e músicas. Pode surpreender a revelação de que Bituca não se identificava com a arte de compor e essa veia ser despertada após sessões de cinema Nouvelle Vague com Márcio Borges. Quando finalmente viu em Lô Borges um rapaz em pé de igualdade e não mais um menino, quando este pediu uma batida em um bar, no lugar do refrigerante de sempre. Ou ainda a história de quando abriu a encomenda endereçada a mãe, um violão, no qual tirou uma música sem nunca ter tocado antes, e que por isso, conseguiu escapar de uma bronca ao impressionar Dona Lilia.

A admiração pelas mulheres é parte fundamental da obra de Bituca, e rendeu momentos emocionantes, como em “Lilia”, música dedicada à sua mãe, momento em que explicou o fato da mesma não ter letra: por não haver palavra que descreva a sua beleza. Também em “Maria Maria”, uma das mais celebradas pelo público, foi dedicada a grande dama da arte brasileira, Fernanda Montenegro, presente no show. Outro momento marcante foi a referência a Fernando Brant, que morreu em 2015, ao dizer se sentir grato por sua amizade, sem a qual a vida não teria sido tão bonita. Não à toa, o show termina com “Paula e Bebeto”, e um recado sobre o que é importante em nossa passagem pelo mundo: o amor, seja sob qual forma, nos torna melhores.

Muito além de um show, a noite foi a celebração de uma obra atemporal e da vida de um grande artista, que ainda hoje nos dá um norte para compreendermos o que é ser brasileiro em essência.

MILTON NASCIMENTO, Turnê Clube da Esquina
17 de maio de 2019, Vivo Rio

1. Tudo que você podia ser / 2. Nada será como antes / 3. Clube Da Esquina / 4. Cais / 5. Nascente / 6. Mistérios / 7. Cravo e Canela / 8. Casamiento de negros / 9. Um girassol da cor do seu cabelo / 10. Dos cruces / 11. Para Lennon e McCartney / 12. San Vicente / 13. Trem de doido / 14. Estrelas / 15. Clube da Esquina nº 2 / 16. Nuvem cigana / 17. Lilia / 18. Paixão e fé / 19. Um gosto de Sol / 20. Paisagem da janela / 21. O Que foi Feito Devera / 22. Maria Maria / 23. O trem azul // Bis: Francisco, Ponta de Areia e Paula e Bebeto