Na solidão de Praga, na República Tcheca, o carioca Leo Middea pensava em largar a música – uma carreira iniciada em 2014 e que já acumulava dois discos, “Dois” e “A dança do mundo”. Era setembro de 2018 e o compositor se sentia deprimido, inadequado, carregando uma angústia que se manifestava em crises de pânico. Em suas palavras, ele “andava perdido pela rua”.

Numa dessas andanças, buscando algo que não sabia bem o que era, reencontrou em seu celular cerca de 100 músicas inéditas suas – quase todas compostas em Lisboa, para onde tinha se mudado em 2017, saindo de seu Jacarepaguá natal. Claras, solares, largas – elas eram em tudo opostas ao que via à sua volta e ao que vivia em seu peito. No lugar do muro e da impossibilidade, um espírito de “Tudo que seja momento me atrai” (verso que não por acaso abre “Vicentina”, o disco que nascia ali).

Leo ligou para Paulo Novaes, amigo brasileiro que vivia em Lisboa, e disse que precisava voltar a Portugal, gravar aquelas canções, fazer seu terceiro disco. Companheiro no processo de selecionar o repertório (“As 100 viraram 30, as 30 viraram as 12 que entraram no disco”, explica Leo) e desenhar o conceito do álbum, Novaes acabou assinando a produção de “Vicentina”.

Nascido num poço existencial de Praga em 2018, o disco tem raízes mais fundas escondidas em seu título. Leo tinha quatro anos quando Vicentina – senhora italiana amiga de sua avó Rosina – chegou a seu ouvido e falou baixo, em tom de segredo: “Quando você crescer vai ser cantor”. Vinte anos depois, ele remete àquela premonição e batiza seu terceiro disco em memória daquele primeiro sinal, mágico, do que viria a ser sua vocação: “Eu me interesso por cantar”, repete ele várias vezes em “Bairro da Graça”.

“Divina certeza”, faixa de abertura de “Vicentina”, dá o tom sensorial, quente, tropical, moreno, brasileiro que atravessa o disco. O verso “Dentes, pernas, coxas” ecoa o Caetano Veloso de “Você é linda” (“Dentes e músculos/ Peitos e lábios”) – o baiano volta no fim da canção, numa breve menção a “Você não entende nada”.

Ao lado de Caetano, outro baiano se afirma como influência. Gilberto Gil – sobretudo o Gil que vai de “Refazenda” (1975) a “Raça humana” (1984) – paira sobre a sonoridade do álbum. Ele serviu de referência direta para os vocais femininos e metais do disco – que tem arranjos assinados pelo português Polivalente. Além de “Divina certeza” (que tem em seu subterrâneo algo da gravação de Gil para “Só quero um xodó”), essa marca sonora aparece em momentos como “Ca, Nina”, “Bairro da Graça” e “Eu o Rio, leste”.

Para além de Caetano e Gil, “Vicentina” carrega a herança de uma MPB com pendores pop – calcados na melodia com desejo de rádio, na rica rítmica que passeia pela Bahia e outras latitudes aquém e além-mar, nas cores vivas dos arranjos. Mais do que as referências, é curioso acompanhar o caminho que Leo traçou até alcançá-las. Ele cresceu ouvindo rock britânico e americano por influência da mãe – partindo dos Beatles, chegou a Green Day e Linkin Park. Até que, aos 16, chegou a seus ouvidos o disco “Canções de apartamento”, de Cícero. Após a estranheza inicial (Narciso acha feio o que não é espelho, enfim), se apaixonou pelo álbum (“Ouvia 20 vezes por dia”, lembra). Procurou saber, então, quem eram os ídolos de Cícero – assim chegou ao Los Hermanos. Certo dia, ouviu Marcelo Camelo falar na TV de um tal de Chico Buarque. A partir daí, os algoritmos foram guiando-o pela obra de toda a MPB dos anos 1960 e 1970. É interessante notar como toda essa trajetória aparece em “Vicentina” – como o carnaval de alegria melancólica que visita “Vento Bordeaux”, comum ao universo de Los Hermanos e de Cícero.

“Vicentina” é marcado pela presença de Lisboa – e não apenas pelos nomes dos portugueses Polivalente e Janeiro (jovem revelação do pop português, ele faz dueto com Leo em “Romances”) na ficha técnica. Duas músicas têm no título espaços da cidade: “Bairro da Graça” e “Rua de Angola 7”. Ambas tratam de encontros que se deram em terras lusas. Outras trazem a marca da ausência que a distância do Brasil inspira, como “Sorrindo pra saudade” e “Mãe” (que ele escreveu como carta pra sua mãe, em resposta a um telefonema no qual ela chorava preocupada e desgostosa com sua situação como músico morando longe de casa).

Nas últimas palavras ditas no disco, antes do coro de “laiá” que se estende até onde a vista alcança (Beatles? Los Hermanos?), Leo sinaliza para que a mãe tenha calma. E, de alguma maneira, acena com o sentido de “Vicentina”, caminhada iniciada aos 4 anos sob a bênção de um sotaque italiano e vislumbrada duas décadas depois no outono de Praga: “A estrada não é o fim”.

Texto de Leonardo Lichote