Instrumento-símbolo de virtuosismo e responsável por formar grandes lendas da música, a guitarra elétrica já teve dias melhores. Uma das marcas mais consagradas do instrumento, a Gibson, vem tentando manter sua relevância no mercado, mas foi tema de notícia preocupante nesta semana: segundo relatório publicado pelo jornal “Nashville Post”, a empresa tem até julho para quitar uma dívida de US$ 375 milhões. O risco de falência da fabricante preferida de nomes como B.B. King, Slash, Santana e Bob Marley mexe com as emoções de gerações que cresceram vibrando com solos e riffs: afinal, ele é reflexo de um cenário ainda mais dramático.

Em comunicado, o chefão Henry Juszkiewicz — que comprou a empresa por apenas US$ 5 milhões em 1986, outro momento delicado, por conta de uma crise interna — garantiu, sem dar detalhes, que está “simplificando o foco e tentando se concentrar em segmentos de produtos que são lucrativos, enquanto se afasta daqueles que têm pouca perspectiva futura”. Polêmico, Juszkiewicz fez aquisições questionáveis recentemente, como a compra da divisão de áudio da Philips por US$ 135 milhões, em 2014.

Mas o problema não só é de administração de uma única empresa. É de mercado. A Fender, maior concorrente da Gibson, também acumula dívidas, e precisou desistir de vender suas ações na bolsa americana em 2012. Para os investidores, o valor de mercado da empresa era superestimado. Já a PRS Guitars (terceira maior fabricante) precisou fazer cortes e aumentar a produção de unidades mais baratas. Na outra ponta, a americana Guitar Center, maior rede varejista de instrumentos do mundo, chegou a um déficit de US$ 1,6 bilhão em 2017.

— Nossos clientes estão envelhecendo, e eles vão embora logo, logo — admitiu Richard Ash, diretor da Sam Ash, maior cadeia familiar de lojas de música dos Estados Unidos, em entrevista ao “Washington Post”. O jornal americano mostrou, no ano passado, que as vendas anuais haviam caído de 1,5 milhão para 1 milhão. O Brasil acompanha a tendência de queda. Na última sexta-feira, um levantamento da Associação Nacional da Indústria da Música (Anafima), divulgado pela rádio “CBN”, mostrou que houve uma diminuição de 78% nas importações do instrumento no Brasil, na comparação entre os dados de 2012 e 2017 — enquanto violões (33%) e teclados (55%) tiveram decréscimo mais ameno.

O impacto negativo do avanço tecnológico no modo de se consumir e fazer música também é citado pelo cantor, compositor e guitarrista Davi Moraes. Pai de uma menina de 5 anos e padrasto de um rapaz de 13, o músico acompanha a luta que é disputar a atenção das novas gerações com videogames, smartphones e séries de TV:

— O mundo está adicto a esses aparelhos, então é natural o crescimento da música eletrônica. Antigamente, na minha época de escola, um cara que sabia tocar um violão agregava a turma, depois vinha outro que tocava baixo, outro, bateria, formavam-se bandas, os saraus. Hoje, o cara faz um show com um DJ e 30 dançarinos, e isso tem dado certo. Não sou contra, mas tem que existir um equilíbrio. Às vezes, o cantor está lá na frente e o instrumentista está escondido, no escuro do palco, ninguém vê. Acabou aquela adoração, aquele glamour.

Certa vez, por exemplo, um jovem Paul McCartney assistiu a Jimi Hendrix esmerilhar sua guitarra no clube londrino Bag O’Nails, em 1967. Aquela experiência o marcou tanto que, até hoje, o baixista beatle costuma pegar uma guitarra (Gibson) Les Paul para canhotos e improvisar uma versão de “Foxy lady” no fim de “Let me roll it” em seus shows solo.

— A guitarra elétrica era algo novo e emocionante no período anterior e imediatamente posterior a Jimi. Então, você conseguiu criar grandes músicos que emulavam caras como B.B. King e Buddy Guy, e gerações foram formadas assim — lembrou McCartney em entrevista ao “Washington Post”, antes de fazer uma pausa dramática e comparar com os dias atuais: — Agora, é mais música eletrônica, e as crianças a consomem de um jeito diferente. Eles não têm guitar heroes como nós tivemos.

Um dos guitar heroes brasileiros de maior reconhecimento mundial, Andreas Kisser (Sepultura, De La Tierra, entre outros) compartilha com parte das ideias dos companheiros de profissão, mas é menos apocalíptico. Recém-regresso da Namm, maior feira de produtos musicais dos Estados Unidos, Kisser garantiu ter visto fabricantes “sorrindo de orelha a orelha” — mas observa que a Gibson não teve estande no evento. Para ele, o mercado brasileiro tem particularidades mais graves.

— O Brasil é onde se pagam mais impostos de importação, é tudo muito caro para comprar uma guitarra. E, em termos de bandas baseadas na guitarra, não tem coisa nova surgindo. Ao mesmo tempo, você vê Pabllo Vittar e artistas do sertanejo toda hora na televisão e esses caras não estimulam a formação de novos instrumentistas. Só dão valor ao visual, ao hit. É cada vez mais difícil ver um moleque por aqui querendo ser músico e escolhendo a guitarra como instrumento, hoje em dia.

Seja como for, neste começo de 2018 as gigantes do mercado vão tentando se manter como podem. A Fender, por exemplo, vem, desde o ano passado, apostando em estratégias para conquistar as novas gerações. Andy Mooney, executivo-chefe da empresa, garante: o papo de que a guitarra elétrica está morrendo é “totalmente exagerado”.

Para ele, o segredo é tentar manter o interesse daqueles jovens que pedem um instrumento, mas desistem de tocá-lo em menos de um ano — dados coletados pela Fender mostram que 45% das guitarras da empresa são vendidas a iniciantes, mas que 90% deles não se tornam clientes frequentes. Uma das apostas é o “Fender Play”, um sistema online para o aprendizado do instrumento com linguagem voltada para os jovens (a mensalidade custa US$ 19,90).

Para Davi Moraes, os músicos mais consagrados também precisam agir para evitar a morte das grandes grifes:

— Música, além do trabalho, é um caso de amor. É por isso que alguns preferem uma Gibson a uma Fender, e vice-versa. Como amantes e parte interessada, acho que os artistas deveriam se unir, tentar virar sócios, não sei, se dispor a tirar as empresas do buraco.

© Agência O Globo, texto de Luccas Oliveira com colaboração de Bernardo Araújo