Era o segundo álbum do cearense Belchior: em 1974, depois de algum sucesso no circuito dos festivais e a gravação de “Mucuripe” (parceria com Fagner) por Elis Regina, ele lançou “Belchior”, LP que tinha as fortes “A palo seco” e “Na hora do almoço”.

Mas pouca coisa aconteceu. Em 76, quando saiu “Alucinação”, ele já não tinha tempo a perder. A obra-prima do cantor e compositor é um dos discos mais importantes da música brasileira dos anos 1970, com canções que exprimiam a urgência do jovem brasileiro entre a violência do estado e o fim dos sonhos de liberdade.

“Mas trago de cabeça uma canção do rádio / em que um antigo compositor baiano me dizia / tudo é divino, tudo é maravilhoso”, desfechava Belchior em “Apenas um rapaz latino americano”, canção que abre o álbum.

Em embalagem folk-rock, ele audaciosamente virava a página o tropicalismo de Caetano Veloso e avisava que tinha coisas mais com que se preocupar naquele momento: “Não me peça que eu me faça uma canção como se deve / correta, branca, suave, muita limpa, muito leve / sons, palavras são navalhas / e eu não posso cantar como convém / sem querer ferir ninguém”.

A vida é muito pior do que a canção, anunciava Belchior, que em 1977, em entrevista à revista “Pop” explicou o título “Alucinação”, dado ao disco: “Viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende?”. E na faixa-título do LP, ele avançou no pensamento: “A minha alucinação é suportar o dia a dia / e meu delírio é experiência com coisas reais”.

Retrato sem retoques da solidão nas grandes capitais, em consonância com a atualidade musical (“Eu não sou do tempo da bossa nova, sou do tempo do rock”, disse em 1976 ao “Jornal do Brasil”) e com uma pouco disfarçada (embora não assumida) referência à obra de Bob Dylan, “Alucinação” é a mais forte coleção de canções de Belchior (e de muitos de seus colegas de geração).

Duas de suas músicas já tinham sido avalizadas por Elis Regina: “Velha roupa colorida” (“o passado é uma roupa que já não nos serve mais”) e “Como nossos pais” (eles venceram e o sinal está fechado para nós que somos jovens”).

E o disco não economizava força, nas frases de efeito nas outras canções, como “Sujeito de sorte” (“ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”), a regravação de “A palo seco” (“e eu quero esse canto torto feito faca corte a carne de vocês”) e “Fotografia 3×4”, outra provocação do cearense ao tropicalista (“Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do Norte e vai viver na rua”).

“É para desafinar mesmo! Desafinar sempre, que esse é o desafio. Hoje em dia, já não se pode mais criar sem correr riscos. E eu quero enfrentá-los”, assim Belchior resumiu “Alucinação” à “Pop” em 1977. E o risco compensou, como se vê pela permenência das canções LP, 41 anos depois, nas citações em timelines do Facebook e nas conversas de amigos logo após a morte do artista.

Discos essenciais de Belchior

‘À palo seco’ (1974)

Para Josely Teixeira Carlos, radialista, professora e pesquisadora da USP, que publicou teses sobre a obra de Belchior, é neste álbum que o cantor e compositor cearense apresenta seu projeto musical, que investe fortemente no diálogo com a literatura.

‘Alucinação’ (1976)

Dois anos depois, Belchior apresenta aquela que é até hoje considerada sua grande obra-prima. “Esse disco resume o sentimento de toda uma geração brasileira, interiorana no meio da cidade grande”, afirma Josely.

‘Coração selvagem’ (1977)

Tanto neste álbum quanto em “Todos os sentidos”, lançado no ano seguinte, Belchior explora o universo da sensualidade, de forma crítica, refletindo sobre amor, paixão e sexo, associados não só à mulher. Ele fala do amor pela palavra, pela poesia, pela vida.

‘Era uma vez um homem e o seu tempo’ (1979)

Em sucessos como “Medo de avião”, “Brasileiramente linda”, “Comentário a respeito de John” e “Meu cordial brasileiro”, Belchior apresenta sua “visão do homem brasileiro em meio ao ideário revolucionário latino-americano de Che Guevara e outros”.

‘Cenas do próximo capítulo’ (1984)

Em disco que canta composições de Raul Seixas (“Ouro de tolo”) e Luiz Gonzaga (“Forró no escuro”), Belchior mostra tanto seu lado roqueiro quanto o mais irônico e sarcástico de suas composições.

‘Baihuno’ (1993)

Para Josely, Belchior usa seu último disco autoral para fazer “um sumário das ideias que apresentou ao longa da carreira, de rapaz latino-americano, ‘baiano’ (uma referência a como os nordestinos são chamados em São Paulo) e ‘huno’ (o povo bárbaro da Ásia Central que migrou para a Europa nos séculos IV e V em busca de novos pastos)”.

* Texto de Silvio Essinger, distribuído por Agência O Globo